Domiciano's Last Stand

Aqui dou alguns pitacos sobre política, esportes, economia, cotidiano, músicas, brigas amorosas, compra e venda de automóveis...

26 maio 2020

O Amigo Oculto. Cap. 14.

Idos de Março

O mês de março tinha começado estranho, com sinais claros de que algo iria acontecer. Pesadas chuvas trouxeram destruição e a confusão típica das grandes cidades.

Em um daqueles dias, Heitor foi pego de surpresa em meio a temporal. O trecho entre a Avenida Sumaré e a Rua Cayowaá ficou submerso em poucos minutos e ele só conseguiu escapar depois de ter ficado por algum tempo nas grades do Allianz Parque.

Já o segundo sinal foi um pouco menos claro. Já fazia algum tempo que ele e Marcelo praticavam tiro esportivo. O gosto pelas armas surgiu meio que de repente e ambos se formaram juntos em um estande de tiro, no Centro de São Paulo.

Como gostava do assunto, Heitor sempre recebia convites para feiras e eventos de armas. Em uma das conversas, um conhecido importador de pistolas e rifles comentou com ele. “Ficou sabendo que o Marcelo comprou uma Singer 1911A1? Excelente arma. Valeu cada centavo dos US$ 90 mil que ele gastou”, ironizou.

A extravagância em si não chamou tanto a atenção, mas sim o tipo de arma. Marcelo era um conhecido colecionador de espingardas e rifles de caça. Por qual razão escolheria uma pistola compacta?

Naquele interminável mês de março um outro acontecimento afetaria de uma maneira positiva a vida de Heitor: Jessica estava grávida. A revelação foi feita acidentalmente, quando ele encontrou o teste de gravidez no lixo do banheiro.

Ainda tomado pela emoção ele viu uma mensagem em seu celular. “Me encontre amanhã no velho bar, mesma mesa de sempre”. Heitor ficou verdadeiramente surpreso com o chamado de Marcelo.

No dia seguinte, logo que chegou ao bar, encontrou o amigo e pediram cervejas. Desde o começo a conversa foi tensa e difícil.

“Sabe porque eu te chamei aqui? Porque queria olhar bem na tua cara. Eu sei de tudo”, pontuou Marcelo, sem piscar.

“Do que está falando cara? Ficou maluco?”, assustou-se Heitor.

O que aconteceu depois foi uma sucessão de revelações. Primeiro, Marcelo abriu uma pasta cheia de fotos. Ele tinha contratado um detetive particular para seguir os passos de Bárbara.

O serviço acabou sendo bem feito, com fotografias dos dois entrando no hotel e até mesmo do abraço que deram no saguão.

Além disso, o bilhete rasgado, que havia sido escrito por Bárbara também tinha sido recuperado.

A situação era irreversível. Heitor ainda tentou justificar-se, mas Marcelo aos berros levantou-se. Sacou a Singer 1911A1 e deu 2 disparos certeiros.

O tempo de assimilar o impacto dos tiros talvez tenha sido ínfimo.

Mas nesse período conseguiu lembrar-se do futebol com potes de iogurte, dos segredos compartilhados com o amigo e do arrependimento que sentia por aquela situação.

Lembrou-se por fim de uma canção que gostava bastante e que falava sobre a narcose¹. Aquele sentimento acabaria por ser o último de sua vida.



1- Sensação próxima à embriaguez e que geralmente é causada durante mergulhos de grande profundidade. Sobre a música consultar https://www.youtube.com/watch?v=rr2FawpcSj8

25 maio 2020

O Amigo Oculto. Cap. 13.

Pax

Desde o episódio da viagem, o afastamento entre Heitor e Marcelo era evidente, mas não havia um rompimento total.

As piadas e memes enviados pelo Whatsapp eram respondidos com emojis e poucas conversas eram de fato desenvolvidas.

O quadro acabou se agravando com as constantes viagens de ambos. Enquanto Heitor passava a viajar cada vez mais - fosse para alguma palestra sobre o case de sua startup ou para curtir os milhões de sua conta bancária - Marcelo vivia uma rotina de muito trabalho (mas também de muita bebedeira e infidelidade).

Apesar das rotinas atribuladas, ambos também projetavam coisas para seu futuro. Heitor e Jessica ficaram noivos, enquanto Marcelo e Bárbara esperavam pelo primeiro filho.

A tranquilidade daquele período não era um bom presságio.




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A volta

Business as Usual

Viagens

Sol e mar

Beijo da Morte

As aparências enganam

Trilha

24 maio 2020

O Amigo Oculto. Cap. 12.

Trilha

O sol brilhava forte em Wuenheim, na França, naquela sexta-feira. O passeio pela rota do vinho, na Alsácia-Lorena, tinha sido uma ideia diferente, mas aceita pelos casais Heitor-Jessica e Marcelo-Bárbara.

Na verdade, Jessica tinha aparecido de repente. Trocaram telefones numa feira do setor financeiro, saíram e começaram um romance em pouco tempo.

A vida havia melhorado bastante para Heitor e Marcelo. Enquanto o primeiro tinha acabado de vender sua startup para um grupo chinês, o segundo já era o vice-presidente de um importante grupo varejista.

O caminho do vinho era curto, cerca de 180 km, e os casais optaram por fazer o trajeto parte de carro e o restante numa caminhada.

Naquele dia em específico, as mulheres decidiram ir de carro, enquanto os homens foram caminhando até Ensisheim, quase na fronteira com a Alemanha.

O percurso de mais ou menos 12 horas foi permeado pela bela paisagem, mas o clima entre os 2 já não era mais o mesmo.

Enquanto Heitor ainda sentia arrependimento por quase ter se envolvido com Bárbara, Marcelo observava no amigo os traços de uma personalidade que abominava, como certo esnobismo e até um sentimentalismo.

Esse pequeno conflito subiria de tom quando, durante o jantar, Heitor já um tanto alcoolizado lembrou do apelido de Marcelo, ainda na época de juventude.

O incidente evoluiu para uma discussão mais pesada e a viagem quase acabou por ali mesmo. Era o prenúncio da tormenta que viria adiante.




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Sol e mar

Beijo da Morte

As aparências enganam

23 maio 2020

O Amigo Oculto. Cap. 11.

As aparências enganam

O ‘quase’ beijo do dia anterior foi algo inesperado na vida de Heitor. Apesar de não reconhecer, ele era de fato um mulherengo.

A trajetória de não se envolver em longos relacionamentos e de priorizar o sexo ao invés do envolvimento mais consistente uma hora cobraria o seu preço. Esse era o dilema que se apresentava para ele.

Muitas coisas foram colocadas na balança, como a lealdade ao amigo Marcelo e os riscos de adentrar um terreno perigoso.

Tentou não pensar mais naquele assunto até que seu celular tocou. Era Bárbara, que fazia o convite para uma festa surpresa do aniversário de Marcelo.

O evento transcorreu bem, com algumas risadas e com o consumo um pouco mais elevado de álcool.

A bebedeira, de maneira incomum, derrubou Marcelo, que dormiu no sofá, enquanto Heitor ajudava Bárbara a limpar a bagunça.

“Ainda não esqueci daquele dia”, cochichou Bárbara. Ainda atônito, Heitor respondeu. “Mesmo? Melhor não falarmos disso”.

Ela foi até a sala e voltou com um bilhete escrito. “Me encontre amanhã às 18h no Palace”.

Ao chegar no saguão do hotel, Heitor logo viu Bárbara e partiram juntos para o quarto 405.

Apesar de terem se beijado, não conseguiram consumar a traição.




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Business as Usual

Viagens

Sol e mar

Beijo da Morte

22 maio 2020

O Amigo Oculto. Cap. 10.

Beijo da morte

Aquela terça-feira não reservava nada de tão emocionante na vida de Heitor. Reuniões, relatórios, almoço e uma saída 1 hora mais cedo para deixar o carro na concessionária para a revisão dos 10 mil km.


No caminho para casa, optou por pegar o metrô ao invés de ir de táxi. Estava de pé lendo uma revista quando sentiu seu ombro ser tocado. Era Bárbara, que também voltava para casa.

Apesar de se conhecerem há algum tempo, nunca gozaram de tanta intimidade. De um lado havia o respeito pela relação do amigo e de outro, a falta de afinidade.

Mas naquele dia,  as coisas estavam ligeiramente diferentes. Bárbara vestia uma blusa branca, saia cinza e meia calça preta. A combinação elegante e monocromática chamou a atenção de Heitor, bem como o batom vermelho e o perfume, que ainda era forte apesar de já ser perto das 20h.

A conversa dos dois pode ter durado uns 15 minutos e girou em torno de banalidades e piadas sem graça.

Na despedida, talvez por algum gesto estabanado, o beijo do cumprimento teve um leve encostar de lábios, bem no cantinho da boca. Um turbilhão de sentimentos invadiu os dois corpos.




Prólogo

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Mudanças

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A volta

Business as Usual

Viagens

Sol e mar

21 maio 2020

O Amigo Oculto. Cap 9.

Sol e mar

O sucesso financeiro de Marcelo e Heitor permitiu que ambos pudessem comprar propriedades no litoral. Uma casa em Ubatuba e um apartamento em Riviera de São Lourenço, foram as respectivas escolhas.

Com os laços mais fortes, alternaram finais de semana, um na casa do outro. Naquele momento, Marcelo pensava em se casar com Bárbara. Já Heitor, cada vez mais mergulhado no trabalho, destinava pouco tempo para (poucas) desventuras amorosas.

Uma delas foi com a advogada Juliana, que foi um tórrido, porém confuso caso de amor. Tudo começou durante um trabalho da consultoria feito em Goiânia. A implantação de um sistema novo de controle de custos ia levar 1 mês.

Um dia foram ao bar, descobriram coisas em comum, transaram, mas a sombra do retorno de Heitor para São Paulo fez com que a relação murchasse e terminasse até com alguma hostilidade de ambos os lados.

Em um dos finais de semana na praia, Heitor e Marcelo pararam em um quiosque para tomar água de côco. A conversa, de maneira inesperada, caiu no tema da infidelidade.

“Cara. Sou capaz de dar um tiro de descobrir que a Bárbara me traiu. Um tiro mesmo. No meio da cara!”, soltou Marcelo.

Heitor estranhou a reação do amigo e amenizou. “Calma bicho. Essas coisas não devem se resolver assim. Você e a Bá tem uma relação boa. Não há razão para esse tipo de pensamento”, amenizou.

Estranhamente, a água de côco havia ganho um gosto amargo para Heitor.




Prólogo

Devaneios

Descobertas

Mudanças

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A volta

Business as Usual

Viagens

20 maio 2020

O Amigo Oculto. Cap. 8.

Viagens

O vôo 4596 partiu do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, com 2 horas de atraso. O destino era São Paulo e Heitor embarcara tranquilo. Sua consultoria de serviços financeiros estava indo bem.

Por 2 semanas percorreu fazendas no interior gaúcho e trouxe pelo menos 4 novos clientes. A bagagem, por sua vez, estava lotada de cervejas, vinhos e outros alimentos produzidos pelos colonos.

O pouso no Aeroporto de Congonhas, quase sempre tenso, também transcorreu sem problemas. Ao ligar o telefone celular viu 2 mensagens de Marcelo. Ligou para o amigo e sentiu que algo grave havia acontecido.

Marcaram para beber no velho bar que frequentavam há alguns anos. A conversa girou em torno de amenidades até que Marcelo foi direto ao assunto.

“Cara, a Bárbara está me traindo”, disparou, seco. Heitor ficou surpreso e questionou. “Mas como sabe disso cara?”.

“Ela tem estado estranha comigo faz algum tempo. Não sou de confiar em intuição, mas sinto que há algo de errado nisso”, pontuou, sem disfarçar o início de um pranto doído.

Heitor ficou realmente surpreso com a revelação. Abraçou Marcelo com ternura e sugeriu que tomassem whisky. Esvaziaram uma garrafa de White Horse e partiram para as delícias da noite.

Em um conhecido prostíbulo da Capital, quase não paravam em pé, mas brincaram com as prostitutas e resolveram todos irem a um mesmo quarto.

A orgia se fez, baseada em odores etílicos, palavrões e sexo de má qualidade. Decadence avec elegance.




Prólogo

Devaneios

Descobertas

Mudanças

Marca humana

A volta

Business as Usual

19 maio 2020

O Amigo Oculto. Cap 7.

Business as Usual

Passados 2 anos dentro da empresa, tanto Heitor quanto Marcelo já haviam subido na hierarquia da companhia. Os dias de caçambas sujas de caminhão e de sangue nas mãos já estavam no passado.

O setor de contabilidade era composto por 5 pessoas. Luiz, o chefe, conservava uma reluzente careca. Seu assistente, Marcos, era alto e muito reservado. Já no lado feminino, Gláucia, preenchia o ambiente com sua voz alta, enquanto Aline era exatamente o seu oposto. Graciosa e tímida, era quase impossível ouví-la.

O caso entre ela e Marcelo ficou em segredo por alguns meses. Como em um jogo de sombras, ambos temiam que o envolvimento afetasse a situação profissional dos dois.

Marcelo havia se tornado o principal vendedor de uma equipe de outros 12. Não havia negócio que não pudesse ser fechado. Apesar de adotar alguns procedimentos questionáveis, trazia lucro e por isso era elogiado e respeitado na companhia.

Um dos rastros deixados por ele permitiu a Heitor descobrir o envolvimento dele com Aline. Por mais que a história com Leandra estivesse superada, ele sentia uma estranha necessidade de vingança.

Com leveza, seduziu Aline e acabou tendo uma noite de sexo com ela. Beijos dados friamente e um clímax sexual curto foram o limite daquela vingança.

Teria Marcelo sabido ou desconfiado de algo?


Prólogo

Devaneios

Descobertas

Mudanças

Marca humana

A volta

18 maio 2020

O Amigo Oculto. Cap 6.

A volta

Ao longo dos 3 anos que passaram sem contato diário, Heitor e Marcelo ainda mantiveram a amizade, por meio de alguns encontros em bares, jogos de futebol society com o pessoal da escola, entre outras coisas.

O retorno aos bons tempos aconteceria quando começaram a trabalhar juntos em uma empresa distribuidora de alimentos.

Ambos faziam parte do mesmo setor e não era um trabalho fácil. Heitor fazia parte do empacotamento de miúdos. Diariamente, fígados, moelas e miolos passavam por suas mãos até chegarem aos pacotes de plástico. De alguma forma se acostumou ao cheiro e à cor do sangue.

Já Marcelo atuava no carregamento de caminhões que saíam diariamente para as entregas. O salário, um pouco acima da média do mercado, garantia algum conforto como uma cervejinha depois do expediente e raros finais de semana na praia.

O clima positivo entre os dois, por outro lado, seria quebrado paulatinamente. Não era possível precisar quando, mas a empresa em que trabalhavam contratou uma nova recepcionista.

Leandra tinha um sorriso cativante e era bastante simpática. Além das belas curvas, é claro.

Aos poucos, algum surto de exibicionismo aqui uma discussão acolá e os dois veriam uma disputa cada vez mais flagrante.

Heitor saiu com Leandra um dia e Marcelo fez o mesmo um pouco depois. No entanto, ela não se mostrava disposta a ficar com nenhum dos 2.

Em um ato impensado, Marcelo tentou dar um ultimato. Pegou forte no braço da garota, que se sentiu incomodada com a situação.

No dia seguinte ao fato, ela contou o que havia acontecido para Heitor, que cumprindo a sequência de decisões erradas, foi para cima de Marcelo.

“Porra cara, você tá louco de fazer isso com ela?”, sentenciou. Ainda atônito Marcelo disparou. “Ela não vale nada. Não vale nossa discussão. Nossa amizade não pode valer um rabo de saia”.

O clima entre os 2 ficou pesado por algum tempo e a paz seria selada em mais uma bebedeira. Para Heitor, no entanto, aquilo ainda não estava resolvido.


Prólogo

Devaneios

Descobertas

Mudanças

Marca humana

17 maio 2020

O Amigo Oculto Cap. 5.

Marca humana

O parto difícil e demorado levou 4 horas na fria noite do dia 5 de setembro de 1981. Marcelo chegava ao mundo como o quarto filho de uma família da periferia de São Paulo.

O pai, Aristides, era bancário e a mãe, Sandra, havia trabalhado como telefonista da companhia estadual de telefonia. Seus irmãos eram Jessica, Mariana e Ricardo.

Mimado desde cedo por ser um caçula bastante temporão (seu pai tinha 47 anos e a mãe deu a luz aos 44), Marcelo teve uma infância relativamente normal. Finais de semana na praia, férias na casa dos tios em Mogi das Cruzes e às vezes jogos do São Paulo no Morumbi.

Apesar desse cenário confortável, Marcelo mostrava desde cedo alguma possessividade e egoísmo. Tais sentimentos eram observados por seus amigos, mas como não oferecia até aquele momento qualquer risco, as desavenças passavam.

Marcelo, por sua vez, logo que começou a andar sozinho de ônibus e metrô, passou a nutrir o hábito de pegar uma linha e ir até o ponto final. Andava por alguns quarteirões e voltava.

Fez isso por alguns meses até que um dia, ao pegar um ônibus e descer uns 3 pontos antes de sua casa, levou o primeiro murro de sua vida. Seu pai, Aristides, divertia-se aos beijos, em um bar com uma mulher, que não era a sua esposa.

Marcelo chorou. Mas não falou nada. Aquela chaga o consumiria por alguns anos.


Prólogo

Devaneios

Descobertas

Mudanças

16 maio 2020

O Amigo Oculto. Cap 4.

Mudanças

O Colégio São João Batista era comandado pelo padre canadense Jeff Miller. Apesar da disciplina rígida, Heitor conseguiu gozar de algumas liberdades ao longo dos 6 anos em que esteve lá.

Seu jeito mais tímido, algumas notas boas e o cinismo o blindariam de grandes confusões. Até mesmo a participação em brigas e o estouro de uma das lâmpadas do pátio foram amenizadas por seu “bom histórico”.

Neste ambiente mais permissivo, Heitor permitia também se envolver em atividades menos óbvias, como uma fracassada candidatura a prefeito da escola - terminaria o pleito com humilhantes 5%.

No entanto, as dificuldades financeiras do país que se aproximava do final do século XX atingiram em cheio a família de Heitor. O pai perderia o emprego e os custos de sua educação precisariam se adequar à nova realidade.

A mudança de colégio, ao final do então chamado Ginásio, viera acompanhada da troca da confortável casa por um apertado apartamento em outro bairro.

Ao comunicar que não seguiria na escola, Heitor estranhou a indiferença do amigo Marcelo. “Porra cara. Estou saindo. E você não fala nada?”, lamentou.

“As pessoas vão e voltam. Ainda podemos falar pela BBS¹”, sentenciou Marcelo.

Ainda marcariam dali uns dias uma bebedeira com vinho barato. Além da ressaca, Heitor sentia tristeza.



1- Bulletin Board System era um software, que permitia a conexão via telefone a um sistema através do seu computador e interagir com ele, tal como hoje se faz com a internet. Chats, trocas de programas eram comuns nesse tipo de plataforma.



Prólogo

Devaneios

Descobertas

15 maio 2020

O Amigo Oculto. Cap. 3

Descobertas

“Tava impedido, isso foi um roubo!”, vociferou o pai de Heitor ao final do jogo. Aquele seria o tema da semana. O futebol ganhava uma importância na vida de garoto quase como um vírus toma as células de um corpo humano.

Na escola as discussões sobre o gol impedido e a desclassificação no campeonato também fizeram a temperatura ferver. Apesar disso, as atenções de Heitor estavam voltadas para outra direção.

Talita tinha os atributos que chamavam a atenção de qualquer um. Para um garoto de quase 10 anos, seria um tanto fatal.

Os olhos verdes, a pele morena e a ousadia imprópria faziam dela um objeto de extrema atração. Ainda que não soubesse, Heitor encontrava daria com ela o primeiro passo de um caminho de dor e sofrimento.

“Você vai ficar só olhando? Pode tocar!”, foi o recado direto de Talita. Um leve amasso no banco do velho ônibus e que não durou mais do que 50 segundos, algo que transformaria a vida de Heitor para sempre. O calor tomou conta de sua face, sentiu formigamentos e uma explosão de sentimentos novos.

Nunca mais tocaria Talita. Mas chegava a sonhar desesperadamente para entender o que havia acontecido.




Prólogo

Devaneios

14 maio 2020

O Amigo Oculto. Cap 2.

Devaneios

O velho ônibus 1958, com motor Mercedes-Benz, subia com sofrimento a ladeira da rua Altino Arantes. Depois de alguns meses, aquela era a forma que os pais de Heitor encontraram para que ele chegasse à escola.

O transporte escolar, diferente para aquele tempo, era conduzido pelo amalucado Alberto Puig, que se dizia espanhol e adorava contar histórias mirabolantes para as 20 crianças que levava e trazia do Colégio São João Batista diariamente.

Uma de suas preferidas era sobre como havia chegado ao Brasil. “Fugi de lá em 1981 após uma tentativa de golpe. Poderia ter sido preso”, repetia com um sotaque canastrão e causava dúvidas mais profundas nas crianças.

“O que é um golpe?”, se perguntava Heitor.

Entre os moleques estava Marcelo, que àquela altura era um amigo quase inseparável. Narrações de futebol, stop, joquempô, tudo era compartilhado pela dupla, que estendia a efusividade para outras figuras como a vesga Bruna, o sardento Mário e o roliço Kléber.

Como num passe de mágica (pelo menos na visão do garoto), as coisas melhoraram. Tanto o pai quanto a mãe passavam a trabalhar todos os dias e o garoto passava boas horas na casa dos avós.

As únicas preocupações eram a matemática e uma estranha introspecção. Em breve uma singela descoberta mudaria aquilo por completo.


Prólogo

13 maio 2020

O Amigo Oculto Cap. 1

Prólogo

Dois tiros. O torpor, o cheiro de pólvora e carne queimada e a última batida no coração de Heitor. Este acabou sendo o desfecho - pouco provável  - para uma história que havia começado uns 30 anos antes.

O ano de 1990 tinha dias de um calor insuportável. Em fevereiro, as temperaturas chegaram aos 37 graus em São Paulo e para Heitor o desconforto só não era maior do que a tensão que vivia em casa.

Naquele tempo, as coisas estavam estranhas no país. Havia o temor de que o novo governo poderia confiscar dinheiro ou tomar outra medida drástica.

No mês anterior, saques ao comércio resultaram em 5 mortes e aquelas notícias impressionavam  a jovem criança, prestes a iniciar a vida escolar.

Era o primeiro dia de aula do Colégio São João Batista, que recebia as ruidosas turmas para mais um ano letivo. Heitor para aliviar certa tensão, brincava de chutar um pote de iogurte.

A brincadeira - comum a tantos garotos daquela idade - era um refúgio contra o isolamento e as dificuldades do primeiro dia de adaptação. Em uma batida com rara precisão, que acertou a trave da quadra, o silêncio só foi interrompido com o grito de outro garoto de sua idade.

“E aí? Belo chute hein? Pareceu o Zico”, disse Marcelo, sem disfarçar a galhofa.

Para Heitor, aquela intromissão, quase indevida, não era um bom sinal. Mas resolveu dar continuidade à conversa. “Com o potinho é bem mais difícil. Quero ver fazer igual”, provocou.

A disputa seguiu-se até a hora de ir embora, com uma leve vantagem para Marcelo. Ficou a promessa de um repeteco no dia seguinte.